Páscoa sob chave de interpretação do Reino de Deus

Páscoa novamente
            Novamente celebramos a páscoa. Tradicionalmente, entre os cristãos é dia em que se relembra a ressurreição de Jesus Cristo, que ressurgiu do túmulo após sua morte e abriu caminho a seus seguidores para a vida nova que há de vir após o fim dos tempos, quando todos serão julgados e terão seu destino determinado entre a vida eterna junto a Deus ou a perdição eterna.

            “Páscoa” deriva da palavra hebraica “pesach”, cujo significado é “passagem” e que se refere à saída do povo hebreu da escravidão a que eram submetidos no Egito. Ou seja, diz respeito à passagem de uma vida de escravidão e opressão à vida em liberdade e autodeterminação. A páscoa cristã também se refere a um movimento de passagem, de mudança de vida, em que a tradição é crer na passagem da vida terrena, limitada e cheia de dores, para a vida celeste, infinita e indolor. É a crença na vida eterna pós morte, junto a Deus e a seus escolhidos.

            O fundamento sobre o qual se firma a tradição é a ressurreição de Jesus, após 3 dias de sua morte, de forma a se tornar o primeiro a adentrar essa nova vida por meio dessa passagem da vida terrena à vida celeste. Ele seria o primeiro e, para se chegar lá, o caminho se faz no seguimento de sua vida. Se formos dignos de viver como Jesus Cristo, seremos elevados à dignidade de morrer e ressuscitar como ele, passando desta vida para a vida celeste junto a Deus.

Relatos da páscoa
            Todo o conhecimento que temos sobre a ressurreição de Jesus nos vem dos relatos dos evangelhos. E aqui começam os problemas. Pois todos sabemos que os evangelhos não se pretendiam textos jornalísticos e nem históricos. São mensagens com destinatários certos e com objetivos delimitados à época e contexto histórico. Seus escritores usaram os recursos e métodos da época, mas também de sua origem, a fim de construir seus textos de forma a que seus destinatários pudessem assimilar as mensagens que queriam transmitir.

            Por origem, os produtores dos textos evangélicos são semitas orientais. Como orientais, sua forma de compreender e produzir textos difere bastante de nossa forma atual. Quando lemos um texto, a primeira pergunta que procuramos responder é “como foi que tudo aconteceu?”, enquanto que os orientais daquela época e lugar procuravam responder: “o que isso quer dizer para mim hoje?”. São duas formas essencialmente diferentes de procurar entender o significado de um texto. Isso repercute na forma com que eles liam os evangelhos à época e causa confusões na forma com que os lemos hoje.

            Portanto, para se compreender hoje o sentido que se pretendia transmitir por meio dos textos evangélicos, é preciso ter em mente a ressalva apontada acima e retomar os textos de uma nova perspectiva. Quando relemos em João 20, 1-9 a descrição do encontro dos discípulos com o sepulcro vazio, devemos nos perguntar “o que isso quer dizer?”, tomando em conta o contexto da vida e da missão de Jesus e o significado que o evento de sua ressurreição tem para seus seguidores naquele e nos contextos futuros da nascente comunidade cristã no entorno do Mediterrâneo. Não podemos nos esquecer que a produção dos textos dos evangelhos foi feita anos após os eventos que eles pretendem relatar (presume-se a elaboração do evangelho de João nos anos 90 do primeiro século da era cristã) e são fruto da junção de diversas tradições orais.

Paralelos da ressurreição
            Para algumas pessoas, é impensável realizar qualquer questionamento em torno à ressurreição, já que, como diz Paulo, “se não há ressurreição dos mortos, então Cristo não ressuscitou” (1 Cor 15, 13). Porém, cabe lembrar aqui que não é a ressurreição o que distingue Jesus Cristo dos demais e o faz especial. De fato, a ressurreição não é privilégio ou exclusividade de Jesus. Em sua época, havia o culto a Mitra praticado entre os romanos, principalmente entre os soldados, que o levaram à Grã-Bretanha, à Alemanha e a postos avançados do império. No início da era cristã, seu culto já havia se espalhado para a Índia, Babilônia e até Portugal. Mitra era uma divindade indo-iraniana cuja referência mais antiga remonta ao 2º milênio a.C.. O culto surgiu na Índia, tendo se difundido pela Pérsia e mais tarde pelo médio oriente, tendo rivalizado com o cristianismo em número e taxa de crescimento de fiéis.

            Mitra é o deus da luz, combatente do mal, protetor dos justos e mediador entre a humanidade e o ser supremo. Assim como Cristo, Mitra encarnou para viver entre os homens e morreu para que todos fossem salvos. O festival romano da Saturnália, dedicado ao deus Saturno, era celebrado entre 17 e 23 de dezembro e havia o costume de se trocar presentes nos dois últimos dias. Em 25 de dezembro se celebrava o nascimento do sol invencível, ou seja, era o solstício de inverno, momento em que o sol está mais distante do equador e a partir de tal momento passa a se aproximar gradativamente, trazendo tempos mais quentes. À medida que as tradições romanas iam sendo suplantadas pelas tradições orientais importadas, os maiores festejos realizavam-se em honra do deus Mitra, cujo nascimento se comemorava a 25 de Dezembro. Coincidentemente, o mesmo dia em que celebramos o nascimento de Jesus. Há outros pontos em comum entre Jesus e Mitra: este também nasceu de uma virgem; pastores, que assistiram ao evento, foram os primeiros que o adoraram; o líder do culto mitráico era chamado de papa e ele governava de um “mithraeum” na Colina Vaticano, em Roma; uma característica iconográfica proeminente no mitraismo era uma grande chave, necessária para destrancar os portões celestiais pelos quais se acreditava passarem as almas dos defuntos; os mitraistas consumiam uma comida sagrada (myazda) que era composta de pão e vinho; assim como os cristãos, eles celebraram a morte reconciliadora de um salvador que ressuscitou em um domingo.

            Apesar de se colocar em pé de igualdade com o cristianismo nos primeiros séculos de nossa era em termos de número de fiéis e índice de crescimento, é o cristianismo, conforme interpretado por Paulo e pelos Padres da Igreja, que alcança o status de religião oficial do império romano. O mitraismo sumiu oficialmente em 377 d.C., data em que o imperador cristão Teodósio proibiu todas as religiões diferentes do cristianismo. Pequenos grupos de adeptos continuaram secretamente a prática do culto até o século V, quando os bispos desencadearam pesada perseguição contra os cultos solares. Surpreendentemente, a própria Igreja cristã incorporou boa parte das práticas mitraistas, como a liturgia do batismo, da crisma, da eucaristia, da páscoa, e a utilização de incenso, de velas, dos sinos, etc. Até as vestimentas usadas pelo clero católico eram extremamente parecidas com as dos sacerdotes de Mitra. Enfim, um sistema religioso que pretende se tornar preponderante não pode abrir mão de ritos e símbolos que funcionavam anteriormente para adeptos de outras tradições, sem correr o risco de perder em números e não conseguir se firmar. Ao ressignificar rituais e celebrações de religiões passadas ou proibidas, o cristianismo se torna mais familiar aos antigos seguidores dessas religiões e se torna alternativa viável, cuja aceitação não causa tanto estranhamento devido às similitudes com as religiões anteriores.

Escolhido de Deus
            Se a ressurreição não é um diferencial de Jesus, o que há de importante em sua páscoa para diferenciá-la? Apesar das similaridades com a tradição mitráica, a vida de Jesus atraiu seguidores judeus, cujas esperanças se apoiavam na tradição do surgimento do messias (que quer dizer “ungido” em hebraico e se diz “cristo” em grego – unção é colocar óleo na cabeça como rito que marca o recebimento de influência espiritual, usado entre os antigos reis de Israel como distinção que marcava sua escolha como reis por Deus) como forma de libertação do mando imperialista romano. A terra em que existia Israel foi tomada pelos romanos em 63 a.C., mas já fora submetida a outros domínios anteriormente. Sob os romanos, obtiveram tolerância para a prática religiosa. Mas aos judeus, repletos de restrições que garantissem pureza para o contato com Deus, mesmo com a tolerância religiosa, era inaceitável a dominação romana e a espera pelo surgimento do messias salvador do povo hebreu tomou tons de iminência. Dessa forma, não pareceu estranho ao povo ouvir do surgimento de mais um candidato a messias do povo, dentre tantos outros que assim se haviam identificado. O messias era o rei que surgiria para unir os israelenses na luta contra os impuros dominadores e que libertaria Israel para a instauração do reino definitivo da nação escolhida pelo próprio Deus.

Para a instauração do Reino
            Conhecemos Jesus como “Cristo”, ou seja, a seu nome ficou apenso o título grego de “ungido”, de rei escolhido por Deus. Que podemos dizer sobre o sentido que a páscoa tem hoje para nós? Como podemos interpretar as passagens evangélicas sobre a páscoa de Jesus? Antes de tudo, devemos nos lembrar que Jesus jamais se colocou como o fim mesmo do seguimento, mas priorizava propagar o Reino de Deus como alternativa à constituição do mundo como era naquele momento. Assim, Jesus não se definia como o fim último da crença ou, como prefiro, da fidelidade a si, mas sim a constituição do Reino de Deus, como ponto alto de sua atuação e do que solicitava daqueles que desejassem se tornar seus seguidores. Jesus queria instaurar o Reino de Deus ainda nesta vida, e não somente na vida após a morte. Mas seu Reino não se limitava ao reino das esperanças israelitas, que se restringiam ao mundo político-religioso-cultural, de libertação da dominação romana para a autodeterminação judaica.

            O Reino se faria presente não por uma intervenção divina (escatologia apocalíptica, do tipo de João Batista), mas por meio da conversão interior dos que se dedicassem ao seguimento de Jesus praticando suas proposições de vida (escatologia ascética, de Jesus). O objetivo de Jesus, portanto, era a instauração do Reino de Deus por meio da conversão de “corações e mentes” à proposta que apresentava para que as pessoas mudassem sua forma de ser e incorporassem a solidariedade, a fraternidade, a partilha e a presença “curadora” em suas relações interpessoais. Essa é a chave de interpretação dos relatos dos evangelhos, incluindo aí a descrição da páscoa de Jesus.

Por meio de seus seguidores
            Se páscoa é passagem, para onde, então? Precisamos realizar a passagem interna, mudar nosso interior para nos tornarmos pessoas melhores e mais humanas, pois o humano se tornou escasso na atualidade. Mas não só isso, pois isso não é suficiente para a construção do Reino de Deus. Uma vez ouvi de uma irmã em Cristo que ser cristão é tratar bem as pessoas, ser educada e cordeira, sorrir onde não há sorrisos, e que a discussão política não é necessária. Ouvi de outro irmão em Cristo que o capitalismo é o melhor sistema de produção que a humanidade já produziu. Diante dessas declarações, sinto que ainda há necessidade de se fazer a páscoa entre os cristãos, que ainda há necessidade de esclarecimentos e de se fortalecer a mensagem original de Jesus, que não queria somente uma transformação interna, como os budistas propõem, mas que faz um chamamento para que todas as pessoas transformem suas mudanças interiores em ações exteriores, que lutem para construir o Reino, que lutem para transformar esse nosso mundo de acordo com os desígnios de Deus. É muito pouco achar que ser cristão, diante das tristezas e desumanidades presentes no mundo – como as 50 mil crianças que morrem de fome e doenças diariamente, como os assassinatos, raptos e violações de mulheres, como a exploração do trabalho infantil e do trabalho escravo – que basta sorrir diante de tudo isso para garantir que se está sendo fiel ao chamamento de Jesus.

            Assim como se pode crer que o sistema elaborado para a acumulação do lucro, não importa sobre quem ou com quantas desigualdades tecidas, quantas vidas empobrecidas e destruídas, que esse sistema seja considerado como sendo o melhor sistema de produção já concebido, assim também somos chamados a dar uma enfática resposta enquanto seguidores de Jesus. Não! Não é essa a resposta do cristão, não é esse o seguimento que Jesus pede. Ele pede a passagem de tudo isso para o Reino, para um mundo de fraternidade, de igualdade, de partilha dos bens da vida, de apoio mútuo, de valorização das pessoas pelo que elas são, e não pelo que consomem ou produzem. Um outro mundo é não só possível, como também necessário. Estamos diante de uma calamidade mundial, maior que a ameaça da guerra fria, que é o aquecimento global, capaz de ampliar todas as mazelas sociais que atualmente afligem a humanidade. Qual será a resposta dos cristãos: irão se empenhar na construção do Reino acolhendo os que sofrem, propondo alternativas às medidas tímidas dos governos, ou irão lamentar e se trancar nos templos clamando aos céus pela salvação?

Encontrando o ressuscitado
            Jesus ressuscitou e vive em cada comunidade de seus seguidores que procura colocar em prática suas propostas para a instauração de uma vida nova entre as pessoas, de acordo com o que ficou conhecido como Reino de Deus. Ali, onde as pessoas procuram viver laços fraternos, na solidariedade e na partilha dos bens necessários à vida, ali mesmo Jesus ressuscitado vive entre nós. Ali a páscoa aconteceu e testemunha a necessidade de que aconteça em todas as outras relações humanas que ainda não alcançaram este nível de transformação e de humanização, que somente Deus mesmo poderia propor.

            Provamos ao mundo que Jesus venceu a morte quando o honramos fazendo de nossa vida o testemunho do Reino de Deus.

Gustavo Lopes Borba

04/04/15 

Boas Notícias como Reino de Deus e como testemunho de Jesus


Recebi em empréstimo, de uma nova amiga, o livro The future of liberation theology: Essays in honor of Gustavo Gutiérrez, editado por Marc H. Ellis e Otto Maduro em 1989. O livro é bastante instigante e trata dos vários aspectos da teologia de Gustavo Gutiérrez, mais conhecido como o “pai” da Teologia da Libertação, pois foi o primeiro a nomear a teologia que acontecia na América Latina por este nome. Junto a Gustavo Gutiérrez temos nomes como Leonardo Boff, Frei Betto, Hugo Assmann, Juan Luis Segundo e Jon Sobrino, dentre outros. Aqui me dedico a compilar e comentar extratos do capítulo 25, “Jesus, theology, and good news”, de Jon Sobrino.

Ao fazer a leitura do capítulo “Jesus, theology, and good news”, de Jon Sobrino, do livro The future of liberation theology, percebo que ele está direcionado a teólogos, refletindo sobre a realidade essencial do cristianismo como eu-aggelion (evangelho, boas notícias) e as consequências disso para a teologia. Ele ainda analisa a relação entre teologia e boas notícias em dois de seus aspectos: a apresentação precisa de Cristo como boas notícias e o modo evangélico de teologia. Como não sou teólogo, não posso me sentir destinatário dos pontos que Sobrino levanta aos cuidados que teólogos devem ter ao realizar seu ofício. Porém, senti-me particularmente interessado quanto à especificação das boas notícias e sua relação com o Reino de Deus, tema particularmente de meu interesse.

Considero que a proposta de vida que Jesus nos faz está sintetizada no termo “Reino de Deus” e que sua proposição aos pobres, injustiçados e oprimidos do mundo vem a ser boas notícias, evangelho. Na verdade, a proposta do Reino de Deus representa boas notícias a essas pessoas justamente pela situação em que elas se encontram e pelo que o Reino traz de nova organização social e comunitária, restabelecendo sua posição de cidadania, inclusão e sustância. De fato, para pessoas que não se encontram nas situações apontadas acima, como pobres, oprimidos e injustiçados, talvez as propostas de estilo de vida de Jesus não pareçam assim tão boas notícias pelo que implica em mudanças no cotidiano e na relação comunitária. Para quem não tem nada, ou perdeu tudo, pensar em uma mudança que leve à partilha dos bens e à solidariedade para com os demais pode representar a única alternativa à morte. Para pessoas de posses, talvez isso se torne o contrário, a própria morte em vida, pelo necessário despojamento e renúncia à forma de vida alcançada pela posse de bens.

Sobrino dá grande ênfase ao papel das boas notícias para o entendimento do que é o cristianismo. De fato, ele chega a afirmar que elas são o conteúdo central da teologia e são também o princípio hermenêutico para dizer se uma teologia é cristã ou não. Ou seja, ao dizer que boas notícias são o princípio hermenêutico, ele quer dizer que são a chave de leitura para dizer se uma teologia é cristã ou não. Teologias que ele chama de cristãs devem se referenciar às boas notícias, para serem consideradas realmente cristãs. Afirma que podemos entender o termo eu-aggelion como expressão do que é bom e positivo no cristianismo, mas com características específicas. Que o bem e o positivo despontam no tempo, acontecem como algo real nas vidas humanas e são anunciados claramente. Porém, antes que pensemos que se trata de uma posição ingênua de sua parte, ele alerta que boas notícias nada têm a ver com atitudes otimistas ou ingênuas. Muito menos com escapismo de realidades desagradáveis. Não suaviza, adoça ou edita a tragédia da história ou os esforços custosos e dolorosos para transformá-la.

Quando recebemos boas notícias, tendemos a comunicá-las às pessoas queridas mais próximas. Boas notícias não costumam ser guardadas, mas divulgadas. Ainda mais quando representam a possibilidade de melhoria das condições de vida, diante de estados de penúria e abandono massacrantes. Sobrino nos alerta, entretanto, que boas notícias não podem ser bem comunicadas, mesmo em linguagem teológica, sem convicção, sem esperança, ou sem alegria. De forma mais radical, se o cristianismo cessar totalmente de ser boas notícias, ele simplesmente cessaria de ser cristianismo. As boas notícias pertencem à identidade do cristianismo e, portanto, é o que o faz relevante. Em seu texto, ele cita Schillebeeckx sobre as igrejas que estão se esvaziando porque os cristãos perdemos a capacidade de apresentar o evangelho para nossos contemporâneos com fidelidade criativa e como boas notícias. Consequentemente, se há uma crise óbvia de relevância – “as igrejas estão se esvaziando” – isto é derivado de uma crise de identidade: por não se saber o que fazer com o eu-aggelion como tal.

Como havia dito acima, as boas notícias podem não sê-lo para todas as pessoas, principalmente num ambiente de disseminação expressiva do cristianismo, em que ele se tornou mais uma prática ritual sem vida ou sentido à maioria dos seus adeptos do que uma proposta de vida plena, extremamente significativa como forma de nova organização social comunitária. A teologia cristã, diz Sobrino, ao invés de comunicar o conteúdo central de sua verdade – o que são as boas notícias – acabou sendo pensada mais e mais em termos de firmar a verdade (o magistério, a tradição, as escrituras). Isso é melhor expresso por Sobrino quando apresenta as diferenças de visão entre Paulo e Jesus sobre as boas notícias. Na visão de Paulo, o eu-aggelion é destinado para todos, enquanto que na visão de Jesus o eu-aggelion é boas notícias diretamente para os pobres deste mundo e somente para eles. Quando a teologia se dedica aos pobres deste mundo, ela fala sobre esperança histórica. Então, de forma visível, o que a teologia comunica traz esperança, alegria e gratidão reais. Isso também requer ação. Por outro lado, quando as boas notícias são direcionadas para todos os seres humanos, essas boas notícias tendem a se concentrar na esperança universal ou na esperança transcendental de salvação escatológica – algumas vezes espuriamente traduzida em mera sobrevivência após a morte – e é difícil combinar isso com esperança e alegria históricas ,que podem ser visivelmente obtidas aqui na Terra.

Refletindo sobre a relevância do cristianismo diante da distância de sua proposta frente à situação de grande número de cristãos, para quem a proposta não representa ser boas notícias mas, ao contrário, más notícias, exatamente pelas renúncias materiais e do egoísmo, proponho uma nova forma de se pensar as boas notícias. Se o cristianismo não tem relevância para os seus adeptos no mundo de hoje, cresce a demanda pela ritualização e pela reafirmação da verdade. O cristianismo precisa voltar a ser relevante para toda e qualquer pessoa, e isso pode ser alcançado considerando que diferentes grupos de pessoas necessitam diferentes boas notícias. Por exemplo, para pessoas que têm acesso a alimento e posses, mas não desfrutam do verdadeiro sentido da vida, chegando às raias de cometerem suicídio, boas notícias são desvendarem o sentido da vida para além da posse e usufruto dos bens materiais, desfrutando da alegria proporcionada pela vida. O que quero dizer é que é possível encontrar boas notícias para toda e qualquer pessoa a partir do cristianismo, desde que nos coloquemos como servidores das mais profundas necessidades humanas não abarcadas pela posse de bens ou pela vida desregrada. Caso tenhamos sucesso nessa empreitada, o cristianismo voltará a ter relevância para o mundo, mas desde que não percamos a dimensão de serviço e de chamado à ação inerentes à proposta do Reino de Deus. Para exemplificar, dou o testemunho do desempenho do papel de pai, que deseja o melhor para o filho e não oferece a ele o que ele quer, mas sim o que ele precisa. Muitas vezes tenho que negar ao meu filho alguma coisa que pode resultar negativo para ele, e outras vezes ofereço algo diferente do que ele pediu, porque o que ele pediu não é benéfico. Da mesma forma, ao procurarmos disseminar as boas novas a esse nosso mundo atribulado e confuso, perdido em meio a tantos chamados contraditórios, temos que ter em mente as palavras de Sobrino: “As palavras usadas para afirmar formalmente que a essência da realidade cristã é o bem e o supremo bem são: amor, justiça, salvação, redenção, libertação”. Ao procurarmos promover boas notícias, elas devem ser reguladas por esses valores, não pelos desejos superficiais e egoístas que diferentes grupos de pessoas têm. É como diz Santo Agostinho: “Ama, e faze tudo o que queres”. Ou seja, se o seu critério para fazer tudo o que quiser é o amor, nada do que faça será em prejuízo a você ou à sua comunidade, e tudo o que você se sentir movido a fazer será em benefício de todos; o seu próprio querer será movido pelo amor, e não pelos “baixos apetites” (cf. Rm 6, 12).

“A despeito de que o que é bom no que concerne às boas notícias é compreensível, e portanto analisável pela razão, as boas notícias como tais não são obtidas somente pela razão, mas são-nos dadas. Um de seus elementos é o fato de serem um dom, uma graça”. Ou seja, muitas vezes recebemos graças, mas não as percebemos e não as reconhecemos como tais. Isso porque temos uma expectativa totalmente diversa do que são graças para nossa vida; esperamos uma coisa e nos sobrevém outra. Achamos, pelo uso de nossa “razão”, que sabemos o que é melhor para nós, ou do que precisamos, quando, na verdade, é algo completamente diverso do que pensamos. Boas notícias não são coisas que vêm para nos agradar, mas são coisas que transformam nosso viver para o melhor para nós e para a comunidade de que fazemos parte, o que nem sempre aceitamos. Mas, quando temos plena consciência dos efeitos que as transformações necessárias para concretizar o Reino de Deus em nossa vida causam, vemos que não há alternativas e o caminho mais lógico é render-se e aceitar o que é proposto. Citação que Sobrino faz de J. Jeremias: “As boas notícias da chegada do Reino de Deus são irresistíveis (overwhelming) e trazem grande alegria”.

O sentido que Sobrino dá a Cristo como boas notícias: “Jesus anuncia e inicia o eu-aggelion (o Reino de Deus) e ele mesmo é eu-aggelion, boas notícias, porque através de sua encarnação, morte e ressurreição Deus realiza a salvação do mundo. O Reino de Deus anunciado por Jesus é boas notícias assim como também são boas notícias que Jesus o anuncie”. Isso me faz pensar na figura de Jesus em seu ineditismo em proclamar as boas notícias no contexto sócio-histórico em que vivia. Sua época tinha a violência como algo que tece o cotidiano, com alto índice de mortalidade por todo o tipo de causas. Num contexto social como esse, nada mais natural do que considerar a violência como uma alternativa. Além disso, a religião já havia deixado de ser uma referência pela helenização, pela paganização que o judaísmo de seu tempo sofrera. Mesmo assim, diante de todo um contexto que se contrapunha a ele, Jesus surgiu defendendo uma proposta contrária a todo o seu universo, desnaturalizando e contrastando com a sociedade de sua época e de seu tempo. Isso faz de Jesus uma pessoa ímpar, destoante de todos os seus coetâneos, inclusive de outros líderes carismáticos que traziam propostas de revolução e transformação social. Vejamos mais pontos colocados por Sobrino sobre Jesus.

“Uma síntese como a de Atos 10, 38 pode dizer que Jesus ‘passou fazendo o bem’, tornando a bondade de Deus em fato histórico neste mundo. Mas no Novo Testamento também se diz em que modo ele passou fazendo o bem. De forma sistemática, a epístola aos Hebreus mostra Jesus como um homem temente a Deus e misericordioso para com os seres humanos fracos. Ao mesmo tempo, o mostra como um ser humano real, próximo aos demais e em solidariedade para com eles. O fato do mediador ser assim já são boas notícias”.

Jesus é destacado por promover a libertação. Pode-se questionar sobre o que isso quer dizer, principalmente entre o público que venha a ler este texto. Mas, para além daqueles que venham a ter condições de ler este texto (acesso à internet, interesse por esses temas, etc.), encontramos pessoas tomadas pelos vícios de drogas (tanto lícitas quanto ilícitas), pelo vício do consumo, pela total carência de condições materiais para a subsistência, pela carência de condições sociais de superação da pobreza (falta ou inadequação no fornecimento público de educação, saúde, transporte, segurança, moradia, cultura, etc.), e tantas outras mazelas que sobrevêm sobre pessoas e comunidades, retirando-lhes a condição de liberdade. Para essas pessoas é que a proposta de Jesus de instauração do Reino de Deus pode ser entendida como boas notícias. “Jesus é boas notícias por causa de sua mensagem libertadora, mas é também porque nele alcançamos a aparência do verdadeiro humano”. (...) “As narrativas evangélicas mostram Jesus entrando ativamente nas vidas dos marginalizados (leprosos, publicanos, prostitutas, os pobres). Esta intimidade já é boas notícias para os marginalizados”. (...) “A realidade na qual Jesus vive é uma realidade de opressão. Sua reação primária frente a isso é a piedade. Ele sente o sofrimento dos oprimidos realmente intolerável. Isso por si são boas notícias”.

“O conteúdo da verdade de Jesus é boas notícias: ele proclama uma verdade em favor dos pobres e contra seus opressores. Também é boas notícias por ele mostrar que acredita na verdade, responde às suas demandas e está convencido de que a verdade humaniza a todos”. (...) “A liberdade de Jesus é direcionada para o bem dos outros e é liberta pela convicção da bondade de Deus. É uma liberdade libertadora fazer essa bondade de Deus real na história para os outros. Jesus tem a convicção de que Deus é bom e é o maior bem para os seres humanos. Jesus acredita que, a despeito de tudo, a realidade é, em última instância, positiva e boa; ele conhece até bem demais que a realidade é limitação, opressão e maledicência, mas acredita que sua possibilidade última também é justiça, companheirismo, graça e bênção”.

Jesus se destaca por acreditar que, mesmo diante da pior situação de opressão a acometer a humanidade, ainda há uma alternativa a ser tentada. É o homem da esperança, da perseverança, do agrupar e do fazer acreditar, para se continuar acreditando e tentando uma nova forma de vida, uma nova organização social. Ele morreu frente a seus opositores, mas jamais deixou de acreditar em uma alternativa que sobrepujasse esse mesmo sistema que o assassinou. Se há uma pessoa a quem valha a pena seguir, essa pessoa só pode ser Jesus. Outras pessoas que adotaram posturas semelhantes, até mesmo inspiradas em Jesus, também devem nos comover na mesma medida, mas nenhuma pode se equiparar ao fato de Jesus ter sido aquele que proclamou isso em palavras, mas também em atos coerentes com suas palavras, renunciando a tudo para manter essa coerência, desde sua vivência familiar até a entrega da própria vida.

“A ressurreição funciona, e se crê nela, como o horizonte último das boas notícias. Mas em segundo lugar isso não altera o fato de que, histórica e existencialmente, Jesus de Nazaré ser tomado como boas notícias por si mesmo, independentemente de sua ressurreição. E mais, na minha opinião (Jon Sobrino) a vida de Jesus tem mais peso que sua ressurreição para o entendimento do que são boas notícias na fé. Não há oposição entre Jesus de Nazaré como eu-aggelion e o Cristo crucificado e erguido como eu-aggelion. Eles se reforçam mutuamente mas, na experiência histórico-existencial, o primeiro é uma estrada necessária para se chegar ao segundo”.

Gustavo Lopes Borba
07/10/12

O cristianismo ainda é relevante para o mundo de hoje?


A todos que se interessam pelo meu blog, gostaria de recomendar enfaticamente a leitura deste magnífico texto de Hoornaert, historiador do cristianismo, postado em seu próprio blog, cujo endereço segue abaixo. Seu texto reflete muito as proposições que faço neste espaço e está em sintonia com a proposta de um novo cristianismo que proponho. 

Eduardo Hoornaert

Quarenta anos atrás, seria impossível abordar o tema acima indicado da forma em que está sendo formulado no título desta conferência. Até a década de 1960, ninguém duvidava da relevância do cristianismo para o mundo. A pergunta nem podia ser formulada. Todos os cristãos estavam convencidos que o cristianismo era relevante para o mundo. O fato de se abordar hoje o tema, da forma em que vai expresso acima, mostra que estamos vivendo tempos novos. Entre 1960 e os dias de hoje, algo muito importante aconteceu, sem fazer muito alarde. Pois no momento em que questionamos a relevância do cristianismo no mundo de hoje, mostramos que percebemos o cristianismo de forma diferente das gerações anteriores. Ora, quem pensa de forma diferente está vivendo um processo revolucionário. Os paradigmas fundamentais que guiam a compreensão das coisas estão mudando. Temos de ver o que isso significa para nós, com a possível precisão. Para tanto, proponho a comparação com uma revolução que nos precedeu de três ou quatro séculos. Efetivamente, a ‘revolução da modernidade’, que culminou na Revolução Francesa do final do século XVIII, tem importantes pontos em comum com a revolução que está em estado de incubação e (em certos casos) fermentação nos nossos dias. O que ocorre entre nós está na continuidade com o que ocorreu nos séculos XVII e XVIII. A eclosão de violência (guerra, perseguição, mortes), ocorrida na França a partir de 1789 (e que chamamos ‘revolução francesa’) nada mais era que a culminância de uma revolução que já fermentava nas cabeças e nos corações durante mais ou menos dois séculos, em diversos países da Europa. O grito a favor da liberdade, fraternidade e igualdade, que enchia as ruas de Paris em 1789, já existia na forma de sussurros, aspirações, sonhos, visões e reflexões muito tempo antes, de muitas formas.

Apresento só um caso que me parece significativo (o caso Spinoza), pois toca de perto o tema que nos reúne aqui hoje: a relevância do cristianismo. Isso é meu primeiro ponto. Depois, num segundo ponto, tento qualificar a revolução que estamos vivenciando. Termino como um terceiro ponto, no qual procuro responder à pergunta: ‘O que fazer hoje?’. 1. Spinoza e o despertar do espírito crítico depois do sonho medieval 2. A onda que se iniciou nos anos 1970 3. Para um cristianismo dialogal. 1. É possível indicar com precisão uma das marcas iniciais da modernidade revolucionária. Num quarto simples da cidade de Haia, na Holanda, em 1670, Spinoza, um judeu holandês escreve um livro já imbuído do ’spirit’ da revolução moderna. Spinoza contesta pela primeira vez a autoria dos primeiros cinco livros da bíblia (Pentateuco) por Moisés, supostamente inspirados por Deus. Para Spinoza, o Pentateuco é uma coletânea de narrativas populares antigas e prescrições sacerdotais reunidas por Esdras e outros intelectuais após o retorno das elites judaicas do exílio babilônico no século V aC, portanto sete séculos após a morte de Moisés. As palavras de Spinoza caíram como uma bomba, não só sobre a cultura do Ocidente (cristãos e judeus), mas igualmente sobre o mundo islamita. Desde então, os tremores causados por Spinoza se alargaram e não mais deixaram as autoridades religiosas cristãs, judaicas e islamitas em paz. Pois Spinoza foi ganhando adeptos sempre mais numerosos, no decorrer dos últimos três séculos. Os exegetas passaram a estudar as línguas bíblicas (hebraico, o aramaico e o grego), ensaiaram uma leitura da bíblia em consonância com os ditames da ciência moderna e enfrentaram corajosamente obstáculos eclesiásticos. Graças à progressiva introdução da idéia de tolerância no decorrer do século XVIII, tanto na França como na Alemanha, ninguém mais foi queimado vivo por emitir opiniões contrárias às autoridades, como ainda aconteceu com Giordano Bruno em 1600. As idéias humanitárias triunfaram com a Revolução Francesa de 1789. O instituto eclesiástico sempre reagiu de forma muito nervosa diante de qualquer tentativa de se mexer com os antigos dogmas, mas ao mesmo tempo nunca permitiram que se discuta a maneira em que a extraordinária riqueza de metáforas, símbolos, parábolas e visões da bíblia ficou sendo ‘engarrafada’ em fórmulas cuidadosamente estudadas na base de um elaborado cálculo anti-herético. Ninguém podia nem de longe mexer com o símbolo da fé cristã, promulgado pela assembléia episcopal de Nicéia (325). Foi aí que as impressionantes imagens religiosas do evangelho de João (a Palavra de Deus desce do céu à terra, divulga a mensagem de um Deus Pai e volta ao céu, depois de ter deixado na terra o Espírito Santo) foram traduzidas em dogmas. Muitos continuaram mexendo com o que era ‘intocável’ e daí nasceu um labirinto tão intricado de explicações, controvérsias e hipóteses, que é praticamente impossível seguir tudo. Só quero lembrar que os papas católicos sempre quiseram colocar um dique contra a invasão do espírito científico em área que lhes parecia privativa, mas em vão.

O embate faz vítimas, entre as quais se destaca o sacerdote francês Alfred Loisy (1857-1940) cujo livro ‘O Evangelho e a Igreja’ (L’Évangile et l’Église), publicado em 1902, defende uma tese desde muito defendida, inclusive por intelectuais do império romano (Porfírio e Celso): os evangelhos não correspondem fielmente à história de Jesus. Mas não só no mundo católico os estudos ‘modernos’ causaram problemas, o mundo protestante também foi afetado. Adolfo von Harnack, grande estudioso protestante alemão, encontrou também forte oposição por parte da igreja luterana. Mas tudo isso não parou o movimento. No século XIX nascem a egiptologia, a assiriologia, a epigrafia semita etc. No século XX entram a filologia e a arqueologia bíblica, provocando sucessivos sustos nos que acreditam nas ‘eternas verdades’ bíblicas. Ao mesmo tempo, avança-se no mapeamento de um universo religioso imaginário comum a todos os povos que mantiveram contato com o povo hebreu, não só a Mesopotâmia mas também o Egito. Percebe-se sempre mais que as grandes imagens bíblicas são comuns ao imaginário religioso do Oriente médio: o céu (Deus Criador), a terra (paraíso terrestre), o ar (ascensão), o sopro animador (Espírito Santo). Mesmo os utensílios agrícolas de cada dia como a enxada, o arado, a pá, o torno (Deus torneiro), a fornalha (inferno) servem como símbolos religiosos. O inferno fica embaixo da terra, onde vivem os demônios, monstros e outras ameaças. Entre nós e o céu atuam os anjos, protetores da vida. Fala-se em ‘filhos de Deus’ (título dado aos faraós do Egito) e em virgens que geram deuses. Estudiosos como Sir James George Frazer arrolam diversas narrativas de dilúvios na Babilônia, na Grécia, na Índia, na Austrália, em Nova Guiné e na Melanésia, na Polinésia e na Micronésia e até na América do Sul, na América central e no México, na América do Norte, na África, um pouco por todo o planeta, abrindo campo para um estudo dos mitos religiosos em escala planetária . Vai se diluindo sempre mais a ideia de que ‘a bíblia tinha razão’, assim como a referência absoluta à formulação do Concílio de Nicéia (325). Já no século XIX, estudiosos alemães lançam dúvidas sobre o valor histórico do evangelho de João. Em torno de 1900 já é consenso que os evangelhos de Mateus e Lucas assimilam muita coisa do imaginário popular, em contraste com os evangelhos Q (dos anos 50) e Tomé, que não divinizam Jesus. Esse último, constituindo a descoberta mais famosa de Nag Hamadi (1945), faz sua entrada no rol dos evangelhos cujo estudo se impõe a quem quiser pesquisar as origens cristãs.

Na virada do século vinte e um, a lingüística (Ricoeur, Bakhtin, Wittgenstein, Frege, Habermas, Gadamer) penetra nos estudos bíblicos e demonstra a necessidade de se estudar a mediação literária para se chegar ao Jesus da história. Assim a perspectiva de Bultmann (1926) (que dizia que não se pode dizer praticamente nada sobre Jesus a partir dos evangelhos) é revertida e os especialistas estão de acordo que podemos conhecer Jesus, mas não da forma em que está sendo apresentado pela tradição das igrejas. O problema é Nicéia, não os evangelhos. Concluindo: como Spinoza resume, em poucas palavras, o espírito revolucionário que o anima? No seu ‘Tratado teológico-político’ (1672), ele responde com toda clareza: ‘o mais grave erro da teologia consiste em ocultar a diferença entre conhecer e obedecer, fazendo-nos tomar o princípio da obediência como modelo do conhecimento’. A superação da subordinação do conhecimento (do espírito crítico, da ciência, do estudo, da pesquisa, do pensamento livre) à obediência (à igreja, ao estado, aos superiores), eis o que significa, em última análise, a revolução moderna.

2. Essa superação da obediência pelo conhecimento é o elo que liga a revolução moderna com a revolução atual (que ainda não tem nome). Todos sentimos, mais pelo coração que pela cabeça, que algo de fundamental está mudando, mas é difícil expressar com palavras o que acontece. Por isso dou aqui apenas uns itens em que a mudança se manifesta. Haverá decerto outros pontos (e seria bom se os(as) participantes apontassem alguns). - Até 1970, as igrejas ainda conseguem colocar um dique contra a invasão do pensamento livre no seu recinto, mas isso não é mais possível. O dique rompeu, as águas correm soltas. No caso da igreja católica, é marcante a diferença entre a primeira viagem de um papa ao Brasil (em 1980) e a viagem do papa em maio 2007. O papa João Paulo II ainda viajava sob aplausos universais. Agora, o papa viaja no meio da fermentação de novas idéias no campo religioso. A mídia faz tudo que pode para ‘esquentar’ o povo a participar da viagem do papa Bento XVI, mas não está mais conseguindo animar as pessoas, como antes. Os comerciantes de santinhos, bonés e bandeirinhas, em Aparecida, já estão reclamando. Vamos ver como se manifestará a diferença entre as viagens de João Paulo II e Bento XVI. Pode ser que a mídia oculte, vamos ver. De qualquer modo, é típica a atitude nervosa em torno da ‘beatificação’ de João Paulo II por seu sucessor. A coisa parece que não pega mais. São Frei Galvão já está sendo ridicularizado (as pílulas de Frei Galvão). São apenas sinais esparsos, mas eles indicam o futuro. - Quanto à sociedade em geral, o sinais de crise aparecem por todo canto, em todo o planeta (por onde se espalha a influência da cultura ocidental, pois se trata basicamente de uma crise da cultura ocidental): crise mundial da educação; crise da segurança; crise do casamento (ficar); crise do estado (as multinacionais mandam); crise da autoridade (não há ‘figuras’); emancipação da mulher; dignificação dos homossexuais; libertação do sexo; crise da democracia (discussões em torno de Chavez), universalização da corrupção. Vocês devem ter outros exemplos em mente. Com definir o âmago da presente revolução? Quais são os elementos fundamentais? O teólogo José Comblin responde, num artigo recente da Revista Eclesiástica Brasileira, Vozes, Petrópolis, janeiro 2007: ‘há uma terrível contradição entre a aspiração à liberdade que nasce na revolução cultural dos anos 1970 e o sistema de economia mundial que exerce uma ditadura nos corpos e nas mentes’. Nesta frase tudo está dito. Há dois ingredientes que fazem a revolução atual: (1) de um lado uma ‘aspiração à liberdade’ nunca dantes verificada com tanta amplidão; (2) de outro lado uma ‘ditadura nos corpos e nas mentes’ exercido pelo sistema de economia mundial (companhias multinacionais, a mídia, o mercado, o capitalismo). Essa contradição faz com que estejamos metidos num caldeirão em plena fermentação. Ninguém sabe o que vai resultar dessa fermentação, se haverá uma explosão violenta ou se a humanidade encontrará uma solução pacífica. O que sabemos é que o cristão tem de agir dentro desse processo. Aí está a relevância do cristianismo no mundo de hoje.

3. O que fazer? Penso que Chesterton, citado no portal deste texto, disse a coisa certa: O cristianismo tem de ser re-inventado para corresponder aos anseios da revolução em curso. Trata-se de um desafio imenso e nem todos captam sua importância. Muitos ainda vivem espiritualmente no passado e não chegam a perceber o problema, nem enxergam que tudo está desmoronando em seu redor. As autoridades eclesiásticas, de sua parte, não facilitam a percepção do problema, pois evitam falar do assunto, perdem contacto com a realidade vivida e vão se fechando em sua concha. O papa, por exemplo, se agarra a voláteis aclamações populares e mediáticas, mas não explica o que está acontecendo. Enquanto isso, ninguém presta atenção ao que está dizendo quando recita formalmente o ‘símbolo da fé’ ou participa de alguma liturgia. As palavras gastas que se ouvem nas igrejas viram relíquias mortas, mas, mesmo assim, muitos crentes preferem morrer com elas a colaborar na elaboração de um cristianismo renovado. Bispos como o anglicano Spong ainda são excessões. No seu livro ‚Um Novo Cristianismo para um Novo Mundo’ (Verus, Campinas, 2006), cuja leitura recomendo vivamente, ele desenvolve as etapas penosas da conversão do cristianismo tradicional a um cristianismo sintonizado com a atual revolução nas mentes e nos corações.

O que me parece fundamental em tudo isso é que passemos a divulgar o evangelho sem os recursos tradicionais do poder, do dinheiro ou do prestígio. Como os evangelistas Marcos, Mateus e Lucas. Por puro dinamismo místico, pura vontade de caminhar com Jesus. Jesus não é atingido pela crise das igrejas, pelo contrário, ele apela para a evangelização dialogal. O cristianismo dialogal recusa os métodos autoritativos, quaisquer que sejam. O Deus de Jesus dialoga, não usa a palavra para emitir ordens. Os evangelhos são textos dialogais, eles provocam o público ouvinte ou leitor a participar ativamente de um diálogo com o autor, dando sua opinião, reagindo, refletindo ou discutindo. Textos autoritativos, pelo contrário, pressupõem um público passivo e obediente, atento às orientações. Durante séculos, os evangelhos foram lidos como textos autoritativos, fora das intenções de seus autores. A atual revolução pede que, doravante, eles sejam lidos como textos dialogais. Aí as pessoas sensíveis ao apelo da liberdade vão ouvir o que o evangelho tem a dizer. A divisão sociológica entre um universo de mando e obediência e um universo de discussão e participação encontra sua representação simbólica na maneira em que se usa a palavra. A palavra de Deus não pode ser usada por quem pensa num universo de mando e obediência. É verdade que, durante longos séculos, as igrejas interpretaram os evangelhos de forma autoritativa: a partir do palco, do centro da cena, do palanque, de microfone na mão. Hoje é diferente. O evangelho pertence à platéia, onde se pratica o diálogo. Assim como existem duas posturas básicas diante da sociedade, a autoritária e a democrática, existem igualmente dois tipos de evangelização: a dialogal e a autoritativa. A nossa participação na revolução que acontece no mundo consiste exatamente no confronto entre esses dois tipos de evangelização. Se trabalharmos pelo diálogo, vamos ser ouvidos e vamos conseguir nos comunicar. Os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são de caráter marcadamente dialogal, tanto na sua redação como no seu relacionamento com os(as) leitores(as). Mas desde o começo houve líderes cristãos que rejeitaram o diálogo e impuseram regras de conduta sem tolerar a discussão. Isso já vem dos inícios do cristianismo.

Não duvido da relevância do cristianismo para o mundo de hoje, mas duvido, isso sim, da relevância dos modos historicamente usados para propagar o cristianismo (pastoral do medo, penitência, inferno, pecado, repressão sexual, obediência). A revolução que presenciamos mostra que a leitura autoritativa do evangelho não funciona mais na sociedade em que vivemos. A relevância do cristianismo no mundo de hoje depende da maneira em que os cristãos vivem e divulgam o evangelho. Os próximos anos hão de mostrar se eles são capazes de abandonar os sermões, conselhos, orientações, mandamentos, ameaças (do inferno) e proibições, e partir resolutamente para o diálogo com a sociedade e a cultura.

Mensagem e ações


Em outro lugar (“Jesus como mestre de humanidade” – blog Cristianismo das Catacumbas), escrevi que a força da pregação de Jesus tem fundamento pela força dos valores que ele promoveu. Gostaria de esclarecer melhor alguns aspectos dessa declaração no que concerne à natureza e ao papel desses valores na vida cristã. Ou por outra, o que realmente eu queria dizer ao destacar a força dos valores promovidos por Jesus? O que são valores humanos, afinal?

Valores humanos dizem respeito ao campo da discussão ética da vida em comunidade. Valores orientam a vida de indivíduos e comunidades na sua interação e na sua organização. Valores são indicativos das prioridades eleitas por grupos e pessoas. Aquilo que explicitamos como nossos valores indicam um pouco de nossas motivações e objetivos. Jesus não usou de meios termos na divulgação dos valores que o orientavam. Eles estão presentes na descrição que os evangelhos fazem de seus ensinamentos.

Aliás, devemos entender que valores não são belas palavras no papel, mas objetivos maiores que devem orientar nossos objetivos práticos, nossas ações cotidianas. Quando nos referimos a valores, não estamos apontando as palavras com que os nomeamos, os substantivos. Podemos expressar determinadas palavras como sendo nossos valores, mas não colocá-las em prática. Podemos até não expressar quais são nossos valores, pois eles se expressam nas ações que praticamos. Os valores nos orientam e guiam, conformando tudo o mais em nossa vida e em nossa expressão de acordo com eles. Nosso ser não manifesta valores em momentos extraordinários. Ao contrário, nossos valores devem conformar nossa vida ordinária. É o que fazemos no cotidiano que expressa o que valorizamos, nossos objetivos, nossa visão ética do mundo.

Fiz questão de trazer este esclarecimento para deixar claro o papel das palavras no cristianismo das catacumbas. É bom que se entenda que o que marca e destaca a figura de Jesus não são somente seus ensinamentos, suas palavras, sua mensagem, enfim. Nem se trata de dar importância às suas ações, ao que ele fez. É preciso ter claro que, ao tomar qualquer um desses polos em separado, mensagem ou ações, não se conseguirá compreender a grandeza da pessoa de Jesus e a força de sua proposta do Reino de Deus. Só alcança esse entendimento e só se comove por esse encontro com a pessoa de Jesus quem consegue superar o raciocínio linear e concebe a sua proposta do Reino como ensinamentos e atos, palavras e vida, mensagem e ação. Só assim, integrando o dito com a prática, é que a proposta de Jesus faz sentido e que o seguimento ganha corpo e atualidade.

Desconfiem daqueles que têm palavras bonitas na ponta da língua e vivem somente em púlpitos de “pregação”; daqueles que conhecem de cor citações bíblicas e que vivem trancados em salões a auditórios para os sedentos por belas mensagens. Desconfie também daqueles caridosos abnegados que não param em casa por terem as chaves da “igreja”, daqueles de quem se depende para fazer funcionar qualquer coisa no prédio paroquial. Vivem os extremos empobrecidos da pouca compreensão da proposta de Jesus. São como pássaros mutilados, em que lhes falta uma das asas. Pois que o Reino não é puro ativismo e nem compêndio de palavras, senão a dialética viva entre a mensagem, a proposta, o plano, os ensinamentos de Jesus na sua compreensão do ser humano e do seu destino comunitário e as ações, os atos, as realizações, os arranjos comunitários que colocam tal projeto do Reino de Deus em prática. Me atrevo a dizer que, se ainda não compreendemos isso, não fomos capazes de compreender Jesus e sua proposta do Reino, a despeito de qualquer estudo ou título acadêmico que tenhamos. Se as palavras e as ações não se tornam unas em nossa vida comunitária, não somos cristãos e não podemos nos considerar Igreja no sentido próprio dos primeiros cristãos. Se consideramos que basta ir à celebração da missa dominical e que nos ignoremos cordialmente durante o ritual, fingimos ser seguidores do revolucionário que, francamente, admiramos e respeitamos pelo que disse e consideramos isso até belo, mas que achamos inviável na prática e, “pensando bem, até que não é tanto para ser realizado, mas pode servir para nos fazer sentir bem”.

Esse é um dos motivos para que eu mire os rituais com meus canhões de ferinidade, pois eles nos enganam ao nos iludir com a noção de que basta segui-los para fazermos o que Jesus gostaria de nós, quando na verdade eles não são nem o começo. É preciso transcendê-los e ir muito além, crescer no entendimento de quem é Jesus, do que ele propõe e o que cabe a nós, como coletivo, realizar para tornar viável sua visão, seu projeto neste mundo, nesta vida, no nosso tempo, na nossa carne. Os ritos não existem para si e não são absolutos. Sua função é pedagógica, para nos fazer crescer na compreensão de Jesus e de seu Reino e, assim, descartarmos a necessidade dos próprios ritos. Existem pessoas que ainda precisam dos ritos, pois ainda estão aprendendo sobre Jesus e o Reino. Mas há aqueles que já suplantaram essa etapa e não encontram maneiras de continuar sua caminhada. É por isso que muitos cristãos amadurecem e deixam o seio da igreja instituição, pois esta não está preparada para lhes oferecer um lugar de continuidade na caminhada. Essa é a tarefa mais importante para a igreja instituição nos dias de hoje: tornar-se relevante para um grande número de seguidores de Jesus que já transcenderam os ritos, amadureceram e querem dar testemunho no mundo e colaborar para a continuidade do Reino de Deus na atualidade.

Enquanto os defensores da igreja instituição, majoritariamente clero e parte do laicato, não perderem o medo da maturidade, a igreja instituição continuará distante do Reino e os ritos continuarão a ser apresentados como única via de seguimento. A igreja comunidade continuará a crescer fora da igreja instituição e a imagem principal dos cristãos frente ao mundo continuará cindida entre os que pregam a mensagem e os que agem sem um projeto claro.

Enquanto isso, “toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto” (Rm 8, 22).

Gustavo Lopes Borba
17/07/12

Jesus como mestre de humanidade


Recentemente me reencontrei com um amigo que não via há 23 anos. Conversamos bastante sobre todo tipo de assunto. Porém, ele mostrou bastante interesse em conhecer mais os fundamentos que embasavam minha visão de cristianismo. Isso me surpreendeu muito, pois é o tipo de pessoa de quem eu jamais esperaria tal tipo de interesse. Isso mostra como não devemos subestimar as pessoas e categorizá-las baseado somente no comportamento que elas manifestam. Há inquietações inauditas em cada um de nós, independente daquilo que pensamos sobre as pessoas ou da imagem que prezamos em construir de nós mesmos. Também me mostrou que há espaço para o cristianismo crescer, mesmo entre aqueles que se colocam em movimento contrário ao cristianismo católico ou a qualquer outro tipo de cristianismo institucionalizado.

Ao refletir sobre o que meu amigo procurava ao se interessar pelas referências que eu tinha de cristianismo, pude chegar à conclusão que ele buscava algo fundamental, algo inerente ao viver humano, cada vez mais difícil de ser encontrado na atualidade. O que ele buscava, afinal? Para responder a essa questão, devemos ver o que Jesus nos oferece, mas com o cuidado de nos debruçarmos à figura de Jesus como pode ser entendida na sua origem, e não no que foi feito dele posteriormente pelas diferentes religiões cristãs.

Ao considerarmos a figura de Jesus, partindo dos pressupostos anteriormente expressos, vemos que devemos nos achegar a ele como um homem da Palestina do primeiro século, terra dominada pelo império romano e envolta em exploração e pobreza. Também temos que considerar o judaísmo como raiz de uma visão de mundo fundada no domínio de um Deus que exige a justiça nas relações sociais da comunidade e que não aceita exploração ou comercialização dos bens considerados comuns, como a terra, por exemplo. O que faz com que Jesus se destacasse em seu tempo para que se tornasse proeminente ao longo dos séculos foi a força de sua mensagem, centrada no resgate do mandamento divino de respeito à justiça nas relações cotidianas. Tal mensagem bateu de frente com a estrutura social existente na sua época, contestando o papel do império romano e sua dominação na Palestina e também o papel dos judeus de destaque que agiam como apoiadores do regime de dominação. Mas não só isso, e sim o âmago de sua mensagem, baseada na solidariedade, fraternidade, companheirismo, gratuidade, amor, justiça.

A força da pregação de Jesus está depositada na força dos valores que promoveu. Caso não houvesse força nos valores que ele propõe, não haveria motivos para os poderosos desejarem e executarem sua morte. Mas é a força inerente a tais valores que incomoda os poderosos e os faz moverem-se a fim de evitar as mudanças na situação que tais valores podem trazer. Assim, Jesus representa efetivamente uma ameaça ao status quo, que então se move para eliminar essa ameaça. Porém, a ameaça não é exterminada pela morte de Jesus, uma vez que ele deu forma linguística a tais valores, que se tornam então passíveis de comunicação, possibilitando que a comunidade que se reuniu em torno a Jesus possa continuar seu trabalho de divulgação desses valores. O que mais impressiona é que tais valores tenham tomado corpo na Palestina daquela época, quando tínhamos a rica contribuição filosófica da Grécia Antiga, assim como a cultura oriental indiana e chinesa. O fato é que nenhuma contribuição trazia o que o judaísmo concebia como mandato divino, que se centrava na ideia de justiça divina.

O que meu amigo buscava, se discorda veementemente das propostas do catolicismo ou de qualquer outra denominação cristã? Como podemos conceber que ele buscava algo maior se não pretende se ligar a nenhuma proposta religiosa? Ele buscava referências que dessem sentido à existência e tais referências são os valores humanos. As diversas religiões existentes, não somente as cristãs, existem como construções culturais que se pretendem meios, instrumentos, para a promoção desses valores humanos. Mas as inquietações de meu antigo amigo mostram que tais valores são inspiração profunda de todos os seres humanos, que buscam alcançá-la por meio de elementos culturais específicos. E também mostram que as religiões não mais têm servido como instrumento para responder a tal inspiração humana. Deixaram de ser um meio, para se constituírem em fim em si mesmas. O que meu amigo busca não são sacramentos ou rituais, dogmas ou tradições, mas sim a vivência cotidiana de valores imorredouros e universais. Hoje, tristemente temos que constatar que as religiões, entre elas o próprio catolicismo, não atuam mais como facilitadores culturais para que nossas inspirações mais profundas de crescimento espiritual e humanista possam obter respostas. Na verdade, levando em conta o catolicismo como exemplo paradigmático, as religiões atuam na defesa de si mesmas, negando as contradições internas e mostrando-se incapazes em responder aos desafios contemporâneos. Mulheres e homens dos tempos atuais, com acesso fácil a todas as informações, não encontram mais respostas nessas instituições. Isso não significa que não tenham questionamentos espirituais ou transcendentes. Tais elementos, como já dito, são inspirações humanas profundamente arraigadas. Se as religiões como estão hoje não respondem a tais inspirações, o que poderá responder?

A experiência do encontro com a pessoa de Jesus e o ouvir atentamente sua mensagem podem tocar as cordas profundas em nosso ser e fazer ressoar mais uma vez as inspirações que trazemos em nós de valores humanos que tragam sentido à existência. Pode parecer contraditório, mas o catolicismo produziu um recente documento que enfatiza essa velha verdade. O documento de Aparecida, fruto da Conferência Episcopal Latinoamericana, resgata o papel do encontro profundo com a pessoa de Jesus Cristo como fonte de onde brota toda a experiência de transcendência. Mas paramos por aqui, pois o Jesus proposto pelo catolicismo não é o mesmo Jesus descrito no início deste texto. É com este último Jesus que acreditamos ser necessário o encontro, com o Jesus que era mais humano e ligado às vicissitudes de sua humanidade do que ao Jesus do Santíssimo. Este Jesus que queremos resgatar é um pobre camponês artesão analfabeto da Galiléia nos tempos da dominação romana e que baseou-se no Deus conhecido pelos israelenses para iniciar um movimento de instauração do Reino de Deus com base em valores de justiça universal e solidariedade gratuita a toda e qualquer pessoa que se associasse aos mesmos valores, e até mesmo aos considerados inimigos, com base na oferta de curas gratuitas e partilha de alimentos em fraternidade.

Tais fundamentos para o Reino de Deus divergem bastante do que o catolicismo apresenta da pessoa de Jesus como Deus. A figura de Jesus tomou tamanho destaque e sua devoção é tão mais importante, que sua mensagem de promoção do Reino de Deus e de valores comunitários ficaram em segundo lugar, quase irrelevantes. Segundo suas afirmações, importa mais que nos transformemos internamente e adotemos atitudes morais, que o restante da sociedade se transformará pela disseminação da moralidade. Deus acolhe nossas súplicas particulares e os malefícios que eventualmente nos atingirem servem aos propósitos divinos de que aprendamos algo ou para nos “amansar”. Em respeito a tradições milenares, não se ordenam mulheres, assim como os leigos não temos espaço para expor nossos conhecimentos em teologia e na interpretação bíblica. Não há democracia e não há diálogo entre presbíteros e leigos. Os ritos não podem sofrer nenhuma alteração em sua proposição, mesmo em respeito a particularidades culturais de cada sociedade, a despeito do documento da Conferência Latinoamericana de Santo Domingo, que propôs a inculturação. Creio que cada um de nós pode lembrar de algo assemelhado que demonstre como Jesus foi ressignificado ao longo do tempo para atender a interesses de manutenção e preservação de uma dada visão de religião.

Urge que a pessoa autêntica de Jesus seja resgatada e promovida, principalmente para se compreender os fundamentos de sua mensagem e que se ressitue em lugar de destaque a proposta de instauração do Reino de Deus na vivência cotidiana entre as pessoas. O Reino de Deus não depende de nenhuma religião, mas precisa de pessoas que vivam os valores que promove. Em minha experiência com o amigo de longa data, as pessoas de hoje estão ansiosas por esses valores e a humanidade não aguenta mais como temos vivido atualmente, em meio a tanta violência, exploração, ganância, egoísmo, indiferença etc. A humanidade está pronta para propostas profundas de transformação. Não há outro mestre em humanidade do que o pobre camponês oprimido Jesus.

Gustavo Lopes Borba
13/06/12

A bíblia como orientação à nossa vida



“Lâmpada para meus passos é tua palavra e luz no meu caminho” Sl 119, 105
Bíblia tradução CNBB

A bíblia tem sido usada como referência para guiar milhões de pessoas em todo o mundo. Lá encontramos um conjunto de orientações sapienciais para todos os aspectos da vida humana. É claro que tais orientações têm data e contexto moral. Isso não impede que muitas pessoas busquem se orientar por seus preceitos nos dias de hoje.

Aliás, um dos grandes impedimentos para que saibamos nos beneficiar da bíblia da melhor maneira diz respeito a essa crença de que seus ensinamentos devem ser entendidos hoje como então, pela letra e não pelo sentido. Isso nos remete à questão da interpretação da bíblia, ou como dizem os estudiosos, à hermenêutica.

Segundo consta na Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Hermenêutica), “Hermenêutica é um ramo da filosofia e estuda a teoria da interpretação, que pode referir-se tanto à arte da interpretação, ou a teoria e treino de interpretação. A hermenêutica tradicional - que inclui hermenêutica Bíblica - se refere ao estudo da interpretação de textos escritos, especialmente nas áreas de literatura, religião e direito”.

Assim, é essencial que consideremos a interpretação que se faz dos textos da bíblia para considerar como ela pode nos orientar na vida. Por ser considerada um livro sagrado, inspirada pelo próprio Deus aos homens que a escreveram, a bíblia ganha uma natureza de imutabilidade e de irrefutabilidade que impede uma compreensão mais sensata de seu papel para os cristãos em geral e para as demais pessoas.

Muitas consideram que os textos da bíblia permitem o acesso mais direto à verdade última, ou à revelação da verdade sobre a vida e a existência dos seres humanos, de tudo o que foi criado e do universo. Essa visão coloca a bíblia como parâmetro universal e relativiza qualquer outra fonte de conhecimentos, inclusive a ciência. Isso, logo se vê, não permite o crescimento e o amadurecimento, pois não permite abertura para tal, já que se considera que o nível máximo de crescimento e amadurecimento já foram atingidos com a bíblia. A ciência traz novas descobertas diariamente, pois o que consideramos realidade é tão complexo e tão incomensuravelmente impossível de ser absorvido pela nossa limitada capacidade cognitiva, que jamais alcançaremos esse nível de compreensão a que chamam de verdade última. Mas existem aqueles que acreditam nisso e estão até dispostos a apostarem suas vidas na defesa disso. Ocorre não só no cristianismo, mas também nas demais religiões. Hoje em dia vemos muito em voga na mídia a exposição dessa defesa suicida associada ao islamismo, mas encontra-se em todas as denominações religiosas. Aliás, o que faz com que se destaque uma ou outra nos diferentes períodos históricos são os interesses políticos de cada momento.

Se a bíblia é a verdade última revelada por Deus e se todas as outras fontes de conhecimento são relativas e não têm a capacidade de trazer nada de novo frente a essa verdade, teremos muitas pessoas que acreditam nisso dispostas a darem suas vidas na defesa de tal crença, inclusive ameaçando a vida daqueles “infiéis” que não acreditam ou não admitem que assim seja. Paradoxalmente, aqueles que se fiam nisso deixam de expressar paralelismo com as palavras do livro que dizem defender, pois passam a odiar os inimigos e a tramar o mal para eles, simplesmente para defenderem seu ponto de vista sobre os textos ali reunidos. Ou seja, a ideia que se tem do texto é mais importante do que o que o próprio texto diz.

Por outro lado, também temos aqueles casos em que há choques de interpretação, nos quais grupos que realizam diferentes interpretações entram em choque pela defesa de seus pontos de vista. Aqui já se aceita que os textos devem ser interpretados. Não há, porém, concordância sobre o resultado dessa interpretação. Vemos que os textos são objeto de interpretação e que deles se retira como resultado algo que pode ser considerado como uma aproximação da mensagem que se produziu originalmente no momento de sua elaboração para o contexto atual em que o intérprete vive, de forma a tornar a mensagem relevante à contemporaneidade em que ele vive.

O exercício de abertura à novidade que os textos bíblicos podem representar aos períodos posteriores de tempo é dificultado devido à constituição do que se convencionou chamar de “tradição”. A tradição é a consideração do que se firmou entre os intérpretes de um período histórico como sendo “verdadeiro” e que foi passado adiante para as gerações posteriores, constituindo a base para novas interpretações. Ou seja, não se parte para novas interpretações a partir de conquistas quanto à capacidade de tradução dos textos em suas línguas originárias ou dos novos conhecimentos arqueológicos dos lugares de origem dos textos, mas se considera o que foi descoberto sobre os próprios textos e suas interpretações anteriores para se considerar como válidas interpretações contemporâneas. As interpretações que não estejam de acordo com a tradição, mesmo que embasadas em novos conhecimentos na tradução ou na arqueologia, são desconsideradas ou desabonadas, simplesmente por esse fato. A mim, não parece algo sério que se aposte nessa abordagem, pois impossibilita justamente o que os defensores inveterados da bíblia como palavra revelada parecem defender: que se alcance a “verdade última”. Aliás, é difícil alcançar qualquer verdade se não se está disposto a descobrir o que é falseável a partir de novos conhecimentos e descobertas sobre algo produzido a tanto tempo atrás.

Enfim, há aqueles que usam a referência do texto bíblico para tentar compreender a vontade de Deus para si em seu momento histórico e para sua vida factual. Tal exercício pode ser feito sob diferentes métodos e ter diferentes nomes. Consideremos o uso do termo “discernimento” para conceber tal ato. Uso aqui o termo de forma extensa, não querendo especificar nenhum método em particular e nenhuma referência a algum ramo de espiritualidade definido. Quero apenas ter à mão um termo que me ajude a prosseguir com a reflexão que ora desenvolvo.

Muitas pessoas procuram na bíblia referência para sua vida e para seu bem estar. Para isso usam de diversas estratégias – atentem que não chamei de método, pois não estou realizando um estudo exaustivo sobre isso – no manuseio do livro sagrado que consideram eficazes para o discernimento da vontade de Deus. Muitos simplesmente pegam a bíblia de forma inadvertida e a abrem na primeira página que sair, acreditando que o acaso na abertura e na leitura representariam maiores chances de encontrarem ali o que Deus deseja que leiam para aquele dia, ou momento. Tal prática é perigosa e enganosa, já que o livro da bíblia foi escrito com determinados objetivos e cada texto deve ser compreendido como um produto humano localizado histórica e socialmente, devendo ser assim entendido, pois seus textos são datados e necessitam de esclarecimentos quanto ao contexto e quanto ao texto. Sem esses cuidados, corremos grandes riscos de nos tornarmos fundamentalistas sanguinários, tal como descrito logo no início.

Uma breve palavrinha sobre os termos “fundamentalista” e “radical”. Defendo a ideia que temos que nos tornar cristãos radicais, mas afastarmo-nos do cristianismo fundamentalista. Com o termo “radical” quero me referir ao necessário retorno às raízes de nosso seguimento de Jesus Cristo, de buscar as raízes do cristianismo, ou seja, que nos movamos na direção do ponto fundante do cristianismo, buscando compreender como essa origem se deu, o que representou para a sua época, que propostas apresentou ao seu tempo e como tais propostas podem ter o mesmo papel hoje como tiveram no seu tempo. Ser radical no seguimento de Jesus é procurar ser cada vez mais como ele, só que nos dias de hoje e através de nossa vida. Por outro lado, o fundamentalismo implica em uma fixação em padrões constituídos na origem do movimento cristão e que busca realizar movimento diverso da radicalidade. Não querem considerar como atualizar a mensagem original para promover o mesmo efeito comparado à época de sua origem. Querem é transformar o momento atual para voltar a ser como era no momento da origem do movimento cristão. Não querem falar às pessoas do tempo atual. Querem fazer o tempo atual voltar ao passado e se tornar o que era na sua origem. Querem tornar a sociedade semelhante ao que era em seus fundamentos. Não dialoga com a diversidade, mas exige sua volta ao passado, segundo os ditames de sua origem.

Retornando à discussão das estratégias para discernir a vontade de Deus a partir da bíblia, considero que outro erro ligado à nossa herança supersticiosa é de acharmos que o acaso é mais representativo da vontade de Deus para cada um de nós do que a capacidade de realizar planejamento, promover preparação para o entendimento dos textos e previsões de ações. Abrir a bíblia em qualquer página não garante acesso à vontade de Deus. Não representa entrega aos desígnios do Pai em confiança plena. Parece até ser uma forma de colocar à prova a intervenção divina para assegurar que ela age em prol daqueles que expressam sua entrega aos seus desígnios: “Vamos ver se Deus está mesmo comigo, agora que me dedico a ele. Se ele estiver do meu lado mesmo, vai ter que haver uma ligação entre o que estou vivendo e o texto que sair aqui por acaso”. Isso não é forma de interpretar a bíblia para que nos oriente em nossa vida. É fazer roleta russa com a diversidade de textos que compõem a bíblia, além de nos afastar do Deus verdadeiro e nos colocar próximos a panteístas, animistas e demais teístas não amadurecidos, cuja base para a crença está relacionada a elementos com concretude e palpabilidade. Não creem realmente em Deus; necessitam de elementos aos quais precisam se apoiar para continuar com essa crença.

Outras pessoas procuram discernir a vontade de Deus considerando que os textos bíblicos irão se referir especificamente a suas vidas, ao momento que estão vivendo, trazendo uma resposta imediata ao que se passa, sem necessidade de nenhuma interpretação. Isso também é um grande erro, pois coloca a pessoa no centro do universo e todos os elementos bíblicos estariam a serviço dela. Desconsidera a especificidade da criação do texto original e os vieses dados pelas traduções diferentes. Mostra que tal pessoa se exime totalmente da responsabilidade sobre sua vida e suas ações, escondendo-se sob o manto da alegada “vontade” de Deus. A vontade de Deus para nós é que assumamos o máximo potencial de que somos capazes, assumindo nosso ser integralmente, inclusive a capacidade de responder (responsabilidade: respons - habilidade) por nossas escolhas. Deus não nos quer manipular ou tirar-nos o direito e a graça de crescermos por nossas escolhas, sejam elas acertadas ou enganosas. Deus quer nos proporcionar a maior das graças, que é o crescimento maduro, possível somente quando assumimos a responsabilidade pelas opções que adotamos ao longo da vida. Se não compreendermos isso, como esperamos compreender a vontade de Deus para nós ou a “verdade última”? Como esperamos compreender o que Deus quer de nós simplesmente pela leitura de um texto da bíblia?

O discernimento da vontade de Deus para nós depende da interpretação que se faz da bíblia como texto produzido e de cada um de seus textos com relação à compreensão dos contextos histórico e social, além do contexto intra texto. Caso não se leve em conta tais elementos, perdemos a capacidade de considerar a vida do texto e de atualizá-lo para o momento contemporâneo. Lidos como estão, são letra morta, pois como terra seca que antes possibilitou a vida. Ao considerarmos os elementos necessários para sua interpretação, tornam-se parte de nós mesmos e vivem conosco o nosso cotidiano, pois que nos alimentam e nos direcionam, constituindo nosso existir. A bíblia é um texto que pode tornar a viver para cada pessoa, dependendo do cuidado com que a manuseamos. Não podemos ser levianos ao nos aproximarmos dos textos da bíblia. Ao mesmo tempo, não podemos ser fundamentalistas com relação ao que ali está, pois o texto é um só, mas sua interpretação deve mudar para atender a novos elementos descobertos. O texto deve ser vivo, ser atualizado e responder ao sentido geral a que se propunha o autor naquele período de elaboração. Jesus nos ensinou a ter essa postura quando mostrou que o Deus do antigo testamento é o mesmo Deus do novo, mas que a forma com que se escreve sobre ele é que muda; ele não. Deus é um Deus de amor, misericordioso, muito diferente do Deus vingativo e o senhor dos exércitos apresentado no antigo testamento. Foi Deus que mudou? Ou foi a forma dos homens experimentarem e sentirem sua presença e sua intervenção? Quem é mais falível a erro? Deus ou os homens, mesmo sendo aqueles que escreveram os textos inspirados da bíblia? Acredito na segunda opção.

Por fim, Deus não está no que chamamos de acaso, aquele ocorrer imprevisto de fatos que nós mesmos interpretamos. O acaso pode ser outro nome para a ação de Deus em nossa vida, mas quando é realmente fortuito. Ao abrirmos uma bíblia sem atentarmos para o livro que vai sair e chamarmos isso de acaso estamos falseando o verdadeiro acaso e impedindo a ação de Deus em nossa vida, além de estarmos enveredando por um caminho perigoso que pode resultar em que nos embasemos numa imagem errônea de Deus e que nos faça cada vez mais egoístas. Deus tem planos para nós e quer que nos tornemos conscientes de sua vontade para que a realizemos. A forma de fazer isso é diversa, inclusive com o uso da bíblia. A nós cabe aprendermos a cada dia mais coisas sobre os textos que compõem a bíblia sagrada para que a possamos usar como referência de discernimento da vontade de Deus para nós.

Deus se preocupa com cada momento de nossas vidas. Essa é uma tarefa que só ele pode realizar. Mas não quer de nós que busquemos respostas a questões relacionadas ao nosso cotidiano. Quando buscamos discernir sua vontade para nossa vida, ele está mais preocupado em nos fornecer uma orientação geral para a vida e para que a usemos em nossos posicionamentos, sem distinção quanto a um momento específico que vivemos. Ele nos pede que vejamos a figura em seu todo, e não as pequenas peças que a compõem. Seu chamado é para grandes questões que se expressam no cotidiano, como a fome, a desigualdade social, o sofrimento humano, o egoísmo. Suas orientações dão a imagem maior, para que assumamos a responsabilidade de responder diante da concretude desses eventos em nosso cotidiano. Nós devemos assumir posicionamentos diante de tais coisas, e não pedir a Deus que nos diga o que fazer diante de cada fração de tempo que vivemos. Ele nos dá sua visão e o que é sua vontade para cada um frente a tais questões e espera que assumamos na vida, nesses pequenos flashes diários, o dever de tornar viva sua vontade. A responsabilidade é somente nossa, e não de Deus. Tantas pessoas se perguntam como é que Deus permite o mal e o sofrimento de tantos inocentes. Deveriam se perguntar como podem tornar concreta, diante dessas realidades, a vontade de Deus que só tem a eles como meio de se expressar e mitigar tais males.

Gustavo Lopes Borba
05/03/12

Agir a partir dos sinais dos tempos - Olhar para a Igreja

SEMINÁRIO DE ESTUDO
“Agir a partir dos sinais dos tempos”
Rumo ao VI Encontro Nacional
19/11/11

Objetivo:
VER e JULGAR a partir do documento preparatório:

• Olhar para a Igreja (Ms. Gustavo Borba)
Objetivo: analisar os últimos 30 anos de ação pastoral a partir do Concílio Vaticano II, considerando: Igreja Povo de Deus, a Teologia da Libertação, Medellín/Puebla, Santo Domingo/Aparecida, romanização do jeito de ser Igreja, espiscopalização, direito canônico e pastoral, tutela do laicato, questão da mulher, diminuição dos católicos. O discurso profético e inovador do CV II e a prática de reordenamento e institucionalização dos espaços eclesiais.

AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Edson pela confiança em me convidar para este Seminário de Estudos. Também agradeço à comissão de formação do CLASP, na pessoa da Mírian, por me permitir fazer parte e contribuir de alguma forma com o laicato em São Paulo. Quero me desculpar antecipadamente pela superficialidade de algumas das afirmações que vou fazer, mas é preciso compensar o pouco tempo disponível para o grande número de informações.

PREÂMBULO
1. Primeiro, gostaria de perguntar a vocês o que a palavra euangelion, que aportuguesamos como Evangelho, significa.

2. E o verbo “evangelizar”? Guardem isso, porque vamos voltar a isso depois.

DE VOLTA AO CONCÍLIO VATICANO II
3. Bem, aqui estamos de novo falando do Concílio Vaticano II (CV II). Já se passaram 46 anos desde o término do CV II e ainda continuamos falando dele. Quais os motivos? O que ele representa para a vida da Igreja hoje, para que a gente continue falando dele?

4. O CV II mudou toda a forma da Igreja ser para si mesma e para o mundo. Foi um concílio de renovação e de atualização, fomentando a abertura ao diálogo. Para compreendermos o que mudou depois de tanto tempo, é preciso fazer contrastes com o jeito da Igreja antes e depois do CV II. Antes as missas eram celebradas em latim e quem não conhecia a língua, no mundo todo, não entendia e nem podia participar efetivamente da celebração. Hoje as missas são celebradas na língua natal de cada país e todos são co-celebrantes junto com o padre que preside a celebração. O padre ficava de costas para os fiéis e hoje já encontramos igrejas em que o altar fica no centro, possibilitando maior participação de todos. A Igreja se considerava à parte do mundo, que era visto como um local de pecados. Considerava-se que não haveria chance de salvação de ninguém de fora da Igreja Católica e hoje se considera que a Igreja é um dos caminhos de salvação. A Igreja estava identificada com a hierarquia e hoje se tem um discurso de que todos são membros da Igreja, apesar de que isso não encontra paralelismo com o que se vive no cotidiano. Antes leigas e leigos eram vistos como ovelhas a serem apascentadas, seguidoras sem questionamento do que era dito pela hierarquia. Hoje ainda persiste um posicionamento de alguns, tanto presbíteros quanto leigos, que gostariam que as coisas fossem assim, mas estamos caminhando e crescendo em formação e em discernimento para atuar ministerialmente em comunhão.

5. O CV II foi revolucionário nas mudanças que propôs para a Igreja. De fato, ainda estamos esperando a plena efetivação dessas mudanças, de tão profundas que foram.

CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS LATINOAMERICANAS
6. O CV II foi tão importante para transformar a Igreja que suas influências se fazem sentir até hoje e estão presentes nos documentos das conferências episcopais latinoamericanas.

7. A primeira conferência episcopal latinoamericana foi realizada no Rio de Janeiro, em 1955, antes, portanto, do CV II. De um de seus pedidos ao papa nasceu o CELAM, o Conselho Episcopal Latino Americano.

8. A segunda conferência episcopal latinoamericana foi realizada em Medellín, na Colômbia, em 1968, e já foi realizada com o objetivo de contextualizar as conclusões do CV II para a realidade latinoamericana. A forma com que isso foi feito foi além do que o CV II poderia prever, pois a conferência de Medellín mudou radicalmente a forma da Igreja latinoamericana, voltando-a aos pobres e fazendo-se encarnada nas diversas realidades vividas pelos países da região, o que era um desejo não realizado por São Hélder Câmara*  durante sua participação no CV II e agora concretizado. Em muitos países latinoamericanos já encontrávamos o domínio de ditaduras militares instauradas após golpes. A forte interferência do governo estadunidense no continente a fim de ganhar e preservar força na guerra fria causou o fim de muitos processos democráticos e levou à opressão de todos os povos ao sul do rio Grande.

Hélder Câmara e outros são aqui tratados como santos porque a Igreja Comunidade não necessita da aprovação da Santa Sé para considerar algum seguidor de Cristo – ou qualquer outra pessoa que agiu bem – como santo, pois consideramos santo aquele que se destaca como exemplo de seguimento e de luta pelo bem dos filhos e filhas de Deus.

9. A terceira conferência episcopal latinoamericana ocorreu na cidade mexicana de Puebla, em 1979. Reafirmou as opções de Medellín e fortaleceu a opção pelos jovens, além de refletir a influência da exortação pastoral de Paulo VI, Evangelii Nuntiandi. Nesta conferência já se fez sentir o peso da intervenção de Roma, reflexo do temor da influência do materialismo histórico**  na Igreja latinoamericana e uma preocupação com a nascente Teologia da Libertação.

** O materialismo histórico é o método de interpretação da História adotado por Karl Marx e, em suma, adotava a noção de que os movimentos da História podem ser explicados pelas alterações no modo de produção material da humanidade.


 10. A quarta conferência episcopal latinoamericana foi realizada em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992, e foi caracterizada pela mudança de prioridades, não havendo mais o foco central na opção preferencial pelos pobres e pelos jovens, mas na inculturação e no protagonismo dos leigos. Em Santo Domingo também vemos o abandono da tradicional metodologia VER-JULGAR-AGIR, refletindo diretamente a intervenção de Roma no andamento da conferência. Tal conferência foi a que menos repercutiu na Igreja latinoamericana pela baixa adesão às suas propostas.

11. A quinta conferência foi realizada em Aparecida, no Brasil, em 2007 e enfatizou os aspectos do discipulado e missionariedade do seguimento de Jesus, apontando os cinco rostos sofredores: pessoas em situação de rua, migrantes, enfermos, dependentes de drogas e presos. Novamente não se dá ênfase à opção pelos pobres e percebe-se um esforço em apresentar outra metodologia de análise da realidade a partir de referenciais pastorais, excluindo-se o materialismo histórico.

PAPADO DE JOÃO PAULO II
12. O papa João XXIII exerceu seu papado de 1958 até 1963, morrendo em pleno CV II. Quando convocou o CV II em 1959, a palavra italiana usada para descrever o significado desse concílio foi “aggiornamento”, que significa “colocar-se em dia”, “atualizar-se”.

13. O papa Paulo VI († 1978) veio em seguida e deu continuidade ao CV II, um processo já em andamento. Talvez por isso mesmo ele não tenha conseguido progredir em aspectos considerados fundamentais para a continuidade do processo de abertura da Igreja. Por exemplo, sua encíclica Humanae Vitae, sobre a regulação da natalidade, veio reafirmar posturas da hierarquia da Igreja contra métodos anticoncepcionais considerados não naturais, como pílula ou camisinha, e defendendo métodos “naturais”, como “tabelinha”, além de afirmar que a união do casal deve necessariamente estar direcionada para a procriação.

14. O papa João Paulo I viveu somente um mês e não representou muito em termos da análise do CV II.

15. O papa João Paulo II († 2005) foi quem efetivamente pôde promover a implementação das resoluções do CV II. Toda a avaliação quanto ao CV II ter sido ou não ainda implementado cabe ao papado de João Paulo II*** .

*** Evidentemente, não estamos aqui nos referindo apenas à pessoa de João Paulo II ou à sua ação ou omissão diretas na implementação, mas na figura que representou e em suas opções de ação, assim como sua submissão a forças internas à Igreja Instituição.

16. João Paulo II viveu na Polônia dominada pela URSS e pelo comunismo. Em plena guerra fria, o padre que viria a se tornar papa viveu atrás da “cortina de ferro”. O chamado socialismo real – assim chamado por ser considerado como o exemplo prático de socialismo e não apenas uma teoria – se mostrou, na verdade, ser um regime antidemocrático, tirano e violento. Os dois países que polarizaram o mundo após a Segunda Grande Guerra – Estados Unidos e URSS – dividiram o mundo em áreas de influência. Da parte da URSS, ficaram todos os países do leste europeu, incluindo aí a Polônia de João Paulo II. Não bastasse isso, a URSS invadiu e endureceu o controle dos países sob sua influência após a chamada Primavera de Praga, movimento reformista democratizante ocorrido na Tchecoslováquia em 1968 que buscou abrandar a repressão do modelo soviético de comunismo. Isso desagradou Moscou, que mandou tropas para derrubar o governo reformista e manter o país sob controle. Para João Paulo II, o maior inimigo era o comunismo, sob o qual viveu. Não que ele aceitasse o capitalismo, mas pareceria contraditório apregoar contra o capitalismo, pois pareceria estar defendendo o comunismo. Após a queda do muro de Berlim o papa chegou a se colocar contra o capitalismo e contra uma globalização desigual, mas aí ele já estava próximo ao fim da vida, doente e cansado. Esse embate contra a exploração capitalista dos povos jamais chegou a ser feito.

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
17. Por sua aversão a qualquer coisa que lembrasse o sofrimento que sua terra natal e ele mesmo sofreram nas mãos do comunismo, João Paulo II jamais soube compreender o papel da Teologia da Libertação e seu uso do materialismo histórico como método de análise do contexto social da América Latina****  e atuou no combate a tal teologia e ao método materialista. Infelizmente ele não demonstrou a compreensão de que, assim como ele e os seus sofreram nas mãos dos comunistas, os povos latinoamericanos também sofriam nas mãos dos capitalistas. A Teologia da Libertação procurou dar uma resposta dos cristãos frente a tanto sofrimento e exploração. Como os cristãos poderiam se eximir de indignar-se frente ao sofrimento e à opressão de tantos sob regimes militares que sufocavam seus opositores com tanta violência? A Teologia da Libertação foi a resposta encontrada por cristãos inspirados pelo CV II em seus diversos documentos. Agora retomemos o significado do que é evangelizar. Muitos documentos, inclusive a Evangelii Nuntiandi e o documento de Puebla centram o sentido de “evangelizar” na proclamação da pessoa e da mensagem de Jesus. Mas como falar em ação de Deus no mundo diante de tanta morte, sofrimento e exploração? É hipocrisia dizer a todos que Jesus os ama e ignorar que tais pessoas sofrem com a fome, a violência, o desemprego, o abandono. A resposta só é possível quando consideramos que é um imperativo evangelizador lutar pela promoção desse povo sofrido e procurar mudar as estruturas que causam a morte de tantos. O objetivo geral das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil do período 2011-2015 é: “Evangelizar, a partir de Jesus Cristo e na força do Espírito Santo, como Igreja discípula, missionária e profética, alimentada pela Palavra de Deus e pela eucaristia, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, para que todos tenham vida (cf, Jo 10, 10), rumo ao Reino definitivo”. Assim, evangelizar é trazer a boa notícia de que Deus está do lado daqueles que sofrem e promove a superação das condições que causam sofrimento a cada um dos rostos sofredores de Aparecida e outros que ali não foram citados. Evangelizar é dar a boa notícia que os sofredores necessitam. É levar à superação da dependência química aos drogados, é garantir emprego e renda aos desempregados, é promover política habitacional aos desabrigados, é promover a igualdade de gêneros para as mulheres que sofrem, etc. E isso também é influência do CV II.

**** Como bem lembrou a Ana Flora durante o Seminário, a Teologia da Libertação não fazia uso direto do materialismo histórico. Talvez apenas Hugo Assmann tenha feito esse uso. Porém, como psicólogo social discursivo, considero que a pragmática do discurso conta com tanta força quanto os fatos e, pela postura de João Paulo II e da Cúria Romana, a Teologia da Libertação estava identificada com o materialismo histórico. Também as forças conservadoras de direita faziam essa identificação, haja vista que os generais que governaram o Brasil e a imprensa da época da ditadura militar chamavam são Hélder Câmara de “O bispo vermelho”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
18. Para terminar, gostaria de lembrar que os chamados padres conciliares, aqueles que participaram do CV II, estão morrendo. São Hélder Câmara († 1999), São Luciano Mendes de Almeida († 2006)***** , São Aloísio Lorscheider († 2007), São Antônio Batista Fragoso († 2006), Dom Jorge Marcos de Oliveira († 1989), São João Batista da Mota e Albuquerque († 1984). As novas gerações de bispos e presbíteros pouco têm feito para implementar o CV II ou mesmo estão desfazendo aos poucos suas transformações. Hoje já temos a autorização do papa para que missas sejam celebradas em latim novamente em alguns lugares. Seminaristas estão retornando com o costume de vestir batina. Aos poucos as mudanças vão chegando e revertendo os passos dados. E nós, como nos colocamos diante disso?

***** São Luciano, efetivamente, nem era bispo nos anos do CV II. Porém, gostaria de incluí-lo aqui pela sua atuação fervorosa durante as conferências episcopais latinoamericanas e pelo seu empenho em viver segundo as orientações advindas do CV II. Ele é, para nós, realmente um “santo”, um exemplo de fidelidade ao Evangelho e à tradição da Igreja Comunidade.


 19. O texto-base preparatório para o nosso VI Encontro Nacional apresenta as partes 1 e 2 – momentos VER e JULGAR – relativamente extensos, enquanto que a parte 3, AGIR, é menor. Essa postura é justificada por expressar a crença de que o agir deve ser construído coletivamente, em diálogo, e com a reflexão advinda de um bom exercício do VER e do JULGAR o momento atual. Muitas pessoas esperam que alguém diga a elas o que devem fazer. Mas o maior dom deste seminário de hoje é possibilitar às pessoas interessadas que conquistem instrumentos analíticos que lhes permitam perscrutar os “Sinais dos tempos”, ou os “sinais do Espírito” a fim de responderem aos desafios atuais que se apresentam, assim como fez o papa João XXIII, ou como fez a Igreja da América Latina. Também nós somos chamados a responder aos desafios que afligem leigas e leigos nos dias de hoje a fim de manter viva e atual a mensagem do Evangelho, que deve ser uma boa mensagem aos povos de nosso tempo e lugar. E isso só se faz quando ouvimos os chamados do Espírito.

20. Para terminar, gostaria de ler o evangelho de Lucas, cap. 12, versículos de 54 a 57, na Bíblia do Peregrino:

“Disse ao povo:
- Quando vedes levantar-se uma nuvem no poente, dizeis logo que haverá chuva, e assim acontece. Quando sopra o vento sul, dizeis que haverá mormaço, e assim acontece. Hipócritas! Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu, e não sabeis interpretar a conjuntura presente? Por que não julgais por vossa conta o que é justo?”

Obrigado.